s o n s . i m a g e n s . p a l a v r a s
30
Abr 11
joão semog, às 17:27link do post | comentar

 

(...)

"O Cônsul ficou imóvel, a olhar o chão enquanto a enormidade do insulto lhe ia chegando à alma. Como se, como se ele não se encontrasse naquela altura, no seu estado normal! Mas, não, naquele momento, não estava. Mas, que é que aquilo tinha que ver com o minuto anterior, ou com a meia hora precedente? E que direito tinha Yvonne a afirmá-lo, a afirmar que ele estava agora, ou não, no seu estado normal, ou - o que era muito pior - que o estaria daí a um ou dois dias? E, mesmo que ele, naquela altura, se encontrasse embriagado, por que fabulosas fases, comparáveis unicamente ao pathos e esferas de Santa Cabala; tinha ele alcançado novamente essa fase, que, rapidamente aflorada uma vez antes nessa manhã, essa fase - a única que lhe permitia - segundo a própria expressão dela, atingir esse privilégio tão precioso como precário e difícil de manter - de se sentir lúcido precisamente quando mais bêbado se encontrava! Que direito tinha Yvonne a dizer aquilo, justamente quando ele havia passado vinte e cinco minutos sem tocar em qualquer bebida decente por amor dela e isto para chegar à conclusão de que, aos olhos de Yvonne, estava tudo menos desembriagado! Ah, uma mulher era incapaz de reconhecer os riscos, as complicações e - sim - a importância da vida de um bêbado! Qual seria o inconcebível ponto de vista em que ela se estribaria para avaliar o que tinha sido a vida dele antes do seu regresso? E Yvonne não sabia nada, nada de tudo aquilo por que ele recentemente passara, como, por exemplo, a queda que dera na Calle Nicaragua, o aprumo, a calma e até a valentia que ele então demonstrara por alturas do uísque irlandês de Burke! Que mundo este! E o pior de tudo é que ela havia estragado aquele momento. Porque o Cônsul, agora, lembrando-se do dito de Yvonne: «Talvez tome um depois do almoço» e de tudo o que aquela frase subentendia, sonhava que teria sido capaz de dizer impulsivamente (só por causa do comentário dela e arriscando até a própria salvação): «Sim, claro que havemos de ir!» Mas quem é que poderia concordar com uma pessoa, senhora daquela certeza enorme de que ele se encontraria no seu estado normal daí a dois dias? Aquilo era como ignorar, segundo o conceito supercialíssimo de Yvonne, o que toda a gente sabia: que ninguém era capaz de descobrir quando é que ele estava bêbado. Tal qual como os Taskersons - Deus os abençoasse! - não pertencia a essa espécie de indivíduos que se vêem a cambalear pelas ruas. É certo que poderia deitar-se nelas, se fosse necessário, mas como um cavalheiro; lá cambalear, isso, nunca! Ah, que mundo este, que tanto despreza a verdade como os bêbados! Um mundo cheio de gente cruel! O senhor disse cruel, comandante Firmin?"

(...)

"Destilando álcool por todos os poros, o Cônsul postara-se à porta do Salón Ofélia. Fora uma esplêndida ideia ter tomado um mescal. Esplêndida! É que essa era a única bebida adaptada às circunstâncias. Além disso, não só provara a si mesmo que não tinha medo de tal bebida, como também se sentia completamente desperto naquele momento, novamente desembriagado e capacíssimo de fazer face a tudo que lhe aparecesse. Se não fosse aquela contínua distorção e aquelas oscilações dentro do seu campo de visão, como se este se encontrasse povoado de inúmeras pulgas do mar, poderia convencer-se a si mesmo de que havia já meses que não provava uma bebida que fosse. A única coisa que ele sentia fora do normal era um calor excessivo."

(...)

 

tradução de Virgínia Motta, 2007

 

Não é por acaso que junto uma música de Roger Quigley a este post. É a imagem musical que o livro me sugeriu.

 

 


09
Abr 10
joão semog, às 19:22link do post | comentar

(...) Tenho observado, no correr dos anos, que todos aqueles que se preocupam demasiado, que se aborrecem, que não estão tranquilos e perdem a coragem, são aqueles mesmos que têm culpas no cartório e sentem a consciência pesada, e também os medrosos e os cobardes. Os homens honestos, ousados e corajosos encaram a vida com alegria. Meu caro, se eu tiver a consciência tranquila perante Deus e perante os homens, as terras podem não produzir nada durante cinco anos, pode vir até um dilúvio, que eu terei razão apesar de tudo isso, e terei paz na minha alma e não me afligirei com coisa nenhuma deste mundo, quer tenha de ser eu a dar de comer aos outros, quer os outros me sustentem a mim; quer seja eu a levar algum ao cemitério ou quer os outros me levem a mim a enterrar, estarei sempre tranquilo em todas as circunstâncias e terei a razão pelo meu lado...Sim.

- Só os indiferentes é que não se afligem, - respondi.

- Sim, sim... - murmurou Ivan Ivanitch, que tinha ouvido mal... - Devemos ser indiferentes, sim, sim... Justamente, é isso... só temos que ser justos perante Deus e perante os homens, e não temos que nos preocupar com o resto. (...)

tradução de Luiz Pacheco, Quasi edições, 2006

tags:

08
Nov 09
joão semog, às 20:00link do post | comentar

(...) O segredo de viver com um mínimo de sofrimento na voragem do mundo reside em atrair o maior número de pessoas para as nossas ilusões; o truque para viver sozinho aqui em cima, longe de todas as perturbadoras confusões, seduções e expectativas, afastado, sobretudo, da própria intensidade, consiste em organizar o silêncio, em pensar na sua plenitude de cume de montanha como capital, no silêncio como riqueza crescendo exponencialmente. No silêncio circundante como a fonte de proveito que escolhemos e a nossa única coisa íntima. (...)

tags:

18
Out 09
joão semog, às 10:21link do post | comentar

(...) Reina em minha alma uma admirável serenidade, semelhante à doce manhã de Primavera cujas delícias estou gozando. Estou só, e gozo o encanto de viver numa região que foi criada para almas como a minha. Sinto-me tão feliz, meu amigo, tão abismado no sentimento da minha existência, que o meu talento sofre com isso. Não poderia desenhar um traço, e todavia nunca fui maior pintor. Quando a bruma do vale se levanta diante de mim, que por cima da minha cabeça o sol lança a prumo os seus raios sobre a impenetrável abóboda da densa floresta, e que apenas alguns escassos raios esparsos deslizam atá ao fundo do santuário, e que eu, deitado no chão entre as altas ervas, perto de um regato, descubro na espessura da relva mil plantazinhas desconhecidas, é que o meu coração sente mais perto a existência desse minúsculo mundo qual formiga por entre a erva, dessa multidão incontável de minúsculos vermes e insectos de todas as formas, e que sinto a presença do Todo-Poderoso que nos criou à sua imagem e o hálito do Muito-Amante que consigo nos leva e nos ampara a flutuar num mar de eternas delícias: meu amigo, quando o mundo infinito começa assim a despontar ante os olhos, e que reflicto o céu no meu coração como a imagem de uma bem amada, então suspiro cá dentro: «Ah!, se soubesses exprimir o que sentes!, se pudesses exalar e fixar no papel essa vida que corre em ti comtanta abundância e calor, de maneira que o papel venha a ser o espelho da tua alma, como a tua alma é um espelho de um Deus infinito!...» Meu amigo...Mas sinto-me sucumbido ao poder e majestade destas aparições.

(...) Como me sinto feliz por ter um coração feito para sentir as alegrias inocentes e simples do homem que põe na sua mesa a couve que ele próprio cultivou! Não goza apenas a couve, mas relembra ao mesmo tempo a bela manhã em que a plantou, as deliciosas tardes em que a regou, e o prazer que sentia dia a dia ao vê-la crescer.

(...) Sim, meu amigo, é pelas crianças que o meu coração mais se interessa neste mundo. Quando me ponho a examiná-las, e que vejo naqueles pequeninos seres o gérmen de todas as virtudes, de todas as faculdades que eles hão-de ter necessidade de desenvolver um dia, quando descubro na sua pertinácia o que virá a ser a constância e força de carácter, quando verifico na sua petulância e até nas suas astúcias o humor jovial e ágil que os há-de fazer deslizar através dos escolhos da vida, e tudo isto tão franco, tão puro!...

(...) À noite, proponho-me gozar o nascer do Sol e de manhã fico na cama. Durante o dia prometo a mim mesmo admirar o mar e não deixo o quarto. Não sei bem porque me deito e me levanto. O fermento que fazia levedar a minha vida falta-me, o encantamento que me mantinha desperto durante a noite e me que me arrancava ao sono da manhã, desapareceu.

(...) Muitas vezes me prostrei no chão para pedir lágrimas a Deus, como um lavrador pede chuva quando vê por cima da cabeça um céu de bronze e a terra ao redor de si a morrer de sede.(...)

tags:

29
Jul 09
joão semog, às 22:57link do post | comentar
O diabo na rua, no meio do redemoinho…
 
Um dia, só por graça rústica, ele matou um velhinho que por lá passou, desvalido rogando esmola. O senhor não duvide - tem gente, neste aborrecido mundo, que mata só para ver alguém fazer careta…
Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!
O senhor…Mire veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou.
Olhe: Deus come escondido, e o diabo sai por toda a parte lambendo o prato…
Figuro que naquela ocasião tive curta saudade do São Gregório, com uma vontade vã de ser dono do meu chão, meu por posse e continuados trabalhos, trabalho de segurar a alma e endurecer as mãos.
Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte.
O que Deus quer é ver a gente aprendendo a ser capaz de ficar alegre a mais, no meio da alegria, e inda mais alegre ainda no meio da tristeza!
O amor só mente para dizer maior verdade.
Viver … é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender-a-viver é que é o viver, mesmo.
Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é.
Quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente.
Vingar... é lamber, frio, o que outro cozinhou quente demais.
A vida é ingrata no macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero.
Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães...
tags: ,

03
Mar 09
joão semog, às 23:15link do post | comentar

 

Tuta-e-meia significa quase nada, ninharia, bagatela e evidencia a relatividade das coisas, ou seja, para mim poderá significar muito. Foi inspirado no título do último livro de João Guimarães Rosa, Tutaméia, publicado ainda em vida, falecendo poucos meses depois de lançada a sua primeira edição em 1967. Escritor que eu muito admiro e que escreveu um dos livros que mais me marcou: Grande sertão: veredas

foto de c.sergio

tags:

joão semog
pesquisar neste blog
 
tags

2000-2009(3)

2007(1)

2008(1)

2009(1)

2010(2)

2011(1)

2012(1)

2013(1)

2014(1)

2015(1)

2016(1)

a dancing beggar(1)

alela diane(1)

anywhen(1)

apparat(1)

arquitectura(11)

at swim two birds(2)

baby dee(2)

balmorhea(1)

banda desenhada(2)

benjamin clementine(1)

benoît pioulard(2)

bernardo sassetti(1)

bill callahan(3)

bon iver(1)

brian borcherdt(2)

carlos bica(1)

concertos(10)

dakota suite(2)

damien jurado(1)

desenho(18)

discos(2)

eddie vedder(1)

eluvium(2)

esquisso(9)

família e amigos(12)

filmes(3)

fleet foxes(1)

fotografia(21)

francis bell(1)

frases(9)

gem club(1)

gil scott-heron(2)

gjon mili(1)

graffiti(1)

great lake swimmers(1)

heather woods broderick(1)

holy fuck(1)

ípsilon(26)

jazz(3)

jeff buckley(2)

jim jarmusch(2)

joan wasser(1)

joão paulo(1)

joey ramone(1)

johnny flynn(1)

josé gonzález(1)

julian casablancas(1)

king creosote & jon hopkins(1)

lambchop(1)

laura marling(1)

livros(6)

malcolm lowry(1)

marble sounds(1)

marco mahler(2)

mário laginha(1)

mark kozelek(2)

matt elliott(2)

matt johnson(1)

matthew robert cooper(1)

message to bears(1)

michael hedges(1)

mombi(1)

moonface(2)

músicas(44)

neil hannon(2)

nick drake(1)

nico muhly(1)

nils frahm(1)

nina simone(1)

noiserv(2)

norberto lobo(2)

off the international radar(1)

owen pallett(4)

patrick watson(2)

peter broderick(4)

peter van poehl(1)

pintura(2)

poesia(3)

roger quigley(2)

rufus wainwright(2)

shearwater(2)

sugestões(2)

sun kil moon(2)

the magnetic fields(2)

the the(2)

tom rosenthal(2)

tom waits(6)

vídeos(48)

zeca afonso(3)

todas as tags

Janeiro 2017
Dom
Seg
Ter
Qua
Qui
Sex
Sab

1
2
3
4
5
6
7

8
9
10
11
12
13
14

15
16
17
18
19
20
21

22
23
24
25
26
27
28

29
30
31